Maria Helena Cordeiro (UNIVALI)**
Resumo:
Este artigo propõe uma reflexão acerca da interação professor – criança, entendida como fundamental para o desenvolvimento integral e saudável da criança no contexto da Educação Infantil. Tem como pressuposto a compreensão de que a criança aprende por meio de sua ação, ao explorar materiais e objetos, e de suas trocas com outras crianças e com os adultos. Os referenciais que embasam esta reflexão estão pautados na abordagem interacionista de desenvolvimento. Nos propomos a avaliar a atuação da primeira autora em sala de aula, com crianças na faixa etária entre 4 e 5 anos, a partir de observações de dois episódios videografados no tempo de atividades de livre escolha. O foco central da reflexão volta-se para o papel do professor enquanto sujeito mais experiente das relações em sala de aula e provedor de situações significativas para o desenvolvimento infantil.
Palavras-chave: interação; aprendizagem; brincadeira; educação infantil;
Introdução
A reflexão que apresentamos neste artigo refere-se a uma discussão teórica sobre as características da interação professor-criança como momento de enriquecimento e valorização das vivências individuais e coletivas das crianças que freqüentam a Educação Infantil. Esta reflexão parte da pesquisa de Dissertação de Mestrado da primeira autora, que está em andamento, na qual nos propomos a avançar os estudos sobre a interação professor-criança na Educação Infantil, centrando o foco no papel do professor.
Enquanto pesquisadoras da Educação Infantil temos observado que um grande desafio dos professores é conhecer os desejos e as necessidades das crianças e como organizar cada tarde a partir das observações do dia anterior. Algumas dificuldades se apresentam com maior peso nessa empreitada: é necessário que o professor desenvolva um olhar atento sobre seus alunos, focando uma atenção mais detalhada em algumas crianças por tarde, mas, ao mesmo tempo, não pode perder de vista a dinâmica do grupo como um todo, registrando os diversos movimentos realizados em sala; precisa saber a maneira apropriada de interagir com cada criança nos momentos em que, sendo ou não solicitada, sua participação é necessária para instigar na resolução de um problema encontrado, para participar de uma brincadeira ou até mesmo para lembrar algumas regras combinadas pelo grupo para este momento de trabalho.
Com base no conhecimento sobre os processos de aprendizagem e desenvolvimento das crianças e como estas constroem seus conhecimentos, cabe ao professor promover esses processos, propiciando à criança o máximo de oportunidades para, autonomamente, construir conhecimentos em sua sala de aula. Faz-se necessário, para isso, criar meios que permitam ao professor avaliar os processos de interação em que está (ou deveria estar) envolvido.
A interação professor – criança no contexto da Educação Infantil
Para que a criança se desenvolva integralmente, é necessário que conheça bem o ambiente em que está inserida, manuseie os materiais e que seja respeitada em suas características individuais e ritmo próprio. Este ambiente exige do professor, como sujeito mais experiente das situações que se estabelecem no contexto de sala de aula, que pense nas possíveis interações que serão estabelecidas na sua sala e assim organize os móveis e materiais, isto é, ofereça materiais, e conforme sejam explorados procure variar estes materiais e acrescentar outros de acordo com a solicitação nas e pelas experiências do grupo (ZABALZA, 1998). Esta preocupação com o ambiente é fundamental para que efetivamente a sala de aula e as interações possam provocar desafios e possibilitem novas oportunidades de exploração e construção do conhecimento. (HOHMANN e WEIKART, 1995/97)
Assim, a participação da professora nas atividades de livre escolha das crianças, tem início quando a mesma recebe os materiais trazidos de casa no início do ano pelos pais e faz a seleção de quais serão disponibilizados nas estantes das áreas de trabalho, que serão oferecidas em sala e que estimularão as brincadeiras das crianças neste espaço. Podemos destacar a importância da organização do espaço feita por áreas de trabalho, enquanto possibilidade de desenvolvimento da livre iniciativa, independência, senso crítico, busca de soluções para pequenos problemas e criatividade. As crianças, aos poucos, constroem a autonomia e responsabilidade, como também se tornam organizadas, tendo um maior respeito com seus amigos e aprendendo a ouvi-los (HOHMANN e WEIKART, 1995/97).
Com o acompanhamento diário, observando e até mesmo brincando junto às crianças e percebendo seus interesses, necessidades e desejos, a professora organiza/reorganiza as áreas de trabalho. Desta forma, organizar o ambiente é fundamental para que efetivamente a sala de aula e as interações entre professor/aluno/objetos possam provocar desafios e possibilitem novas oportunidades de exploração e construção do conhecimento. (HOHMANN e WEIKART, 1995/97).
Análise do 1º episódio
A | (Se aproxima da professora que está sentada em cima da mesinha da área da casa, observando as crianças que brincam nesse espaço) Ô Saio, tu põe aqui com fita no meu braço? |
Profª. | (Responde ao A) Ponho! |
B | Ô Ar, pega um garfo! Ô Ar, pega um garfo! AR, tu tinha que pegar esse ó, só que esse eu peguei primeiro! (mostrando o garfo que ele pegou) |
Profª. | (Fala para A) Pega a fita lá... André, vai buscar a fita, então! |
| A pega a fita na área de artes e entrega-a à prof. |
Profª. | Como se faz com a fita? (A professora se abaixa para atendê-lo.) |
A | (Responde à professora) Enrola de fita assim. (A faz o movimento de como a professora pode fazer.) |
Profª. | (A professora convida outra criança próxima para ajudá-lo) ó Ar, ajuda o A a colocar a fita no... na... no braço? (Ar faz que sim com a cabeça.) Então, vem, vem cá ajudar. Ele e você se ajudam. |
| Ar ignora o convite da professora |
Ar | ô Saio! ... tem dois negócio desse Saio? Tem dois também? (refere-se às colheres de pau) Ai, já sei, já sei! Dois negócios fica massa! |
Profª. | Só que ontem essa brincadeira deu um probleminha, né? Que você machucou o G. Então hoje, tomar cuidado para não machucar os amigos. (Saio fala olhando para o Ar) |
Ar | o Daros? |
Profª. | Não, você machucou o G Silva. Lembra que você bateu com o celular nele? Aí ele chorou. Porque machucou. Bateu na mão. Então, tem que tomar cuidado. |
Ar | (Ar mostra aonde quer que a professora coloque a colher dele com fita: no cotovelo.) |
Profª. | queres ajuda? (pergunta para o Ar) (Saio cola com fita o garfo no braço do Ar) |
Ar | (Ar vai até a estante buscar mais talheres grandes) |
B | (B se afasta e vai até a estante.) |
A | Eu não machuco assim, ó. Eu não fico batendo. (refere-se ao comentário da professora). |
Profª. | (para A) É? |
Ar | (para o B) Vamos pegar outro negócio! |
B | Eu quero outro desse! (refere-se à colher) |
A | Eu também! |
Ar | outro pro braço! |
| Coloca no meu joelho? |
Profª. | Ã? |
A | Põe no outro braço! |
Profª. | (Para Arnaldo) Coloco! |
B | Tú vai pôr aonde, ar? No braço ou no joelho? |
Ar | Nos dois! |
Profª. | Deu? (Ri para o A e cola outra colher no Ar) |
Profª. | Calma eu vou arrumar. (responde a um comentário de Ar que não dá para entender) O outro. Deixa a Saio sentar. Quê? Vê se ela fica presa. |
B | Não, ela faz assim, ó! |
Profª. | Ãaaa! |
A cada realização das atividades de livre escolha é importante que, enquanto a professora acompanha a dinâmica do grupo, consiga priorizar algumas crianças para que possa acompanhá-las e observá-las durante a realização de suas brincadeiras. Ao focar a atenção sobre determinada criança ou um pequeno grupo, a professora torna-se disponível para atendê-los conforme a necessidade. Conforme é solicitada, poderá estabelecer trocas significativas com as crianças, ao apoiar a brincadeira ou incentivar a maior participação de outras crianças. Dois comportamentos necessários do professor neste tempo, e que são apontados pela TCIS, Escala de Interação adulto-criança, (Farran e Collins, 1996), são o envolvimento verbal e físico do professor. O professor precisa cuidar da maneira como se dirige às crianças e como propõe a troca entre elas.
Quanto ao envolvimento físico, no início do episódio transcrito, pode-se perceber o movimento da professora em se aproximar da criança para lhe dar o apoio solicitado, curvando-se para ficar à altura dela. Além disso, ao ajudar as crianças a enrolar a fita nos braços e nas pernas, ela o faz com calma e movimentos suaves, mostrando-se receptiva em relação aos interesses da criança. Durante todo o tempo, ela escuta e responde às demandas das crianças, sem tentar conduzir a atividade, inibindo suas iniciativas. Esse compartilhamento do controle não impede que a professora incentive as crianças a resolverem seus próprios problemas e buscarem apoio umas nas outras quando necessário. Assim, ela convida Arn a ajudar o colega, embora ele não tenha respondido a essa solicitação. Nesse momento, nota-se que a professora poderia ter sido mais convincente, se tivesse conseguido mostrar para as crianças a ligação entre as ações que cada uma vinha desenvolvendo, tornando mais específica e mais concreta a sugestão “Ele e você se ajudam”. Ao não obter sucesso nessa tentativa de transferir para as crianças a responsabilidade de resolução do problema de forma cooperativa, a professora tomou para si essa responsabilidade, deixando de proporcionar às crianças importantes experiências que poderiam promover o desenvolvimento da iniciativa e relações interpessoais.
Já no momento em que alerta sobre o cuidado que Arn deverá ter ao realizar sua brincadeira, devido ao acorrido no dia anterior, a professora demonstra uma maneira positiva do envolvimento verbal, pontuando e relembrando o combinado do grupo, que é respeitar o corpo do amigo. Ao fazer isto, ajudou a criança a representar mentalmente suas ações, de forma a compreender e antecipar as conseqüências das mesmas, aprendendo a se responsabilizar por seus atos.
Em todo o episódio transcrito acima, a professora demonstrou uma grande tranqüilidade em transferir para as crianças o controle da brincadeira, colocando-se ao nível delas, e envolvendo-se na mesma como mais um participante.
Outro aspecto importante neste episódio se refere ao uso dos materiais, nomeadamente da fita adesiva. Esta brincadeira foi realizada em uma época em que as crianças estavam explorando as propriedades dos materiais e a fita adesiva era um dos materiais mais sedutores para elas. A possibilidade de usar este material em quantidade suficiente para atingir os objetivos propostos permitiu que as crianças experimentassem todo o processo, desde a criação da idéia (transformar-se em um robô) até à visualização do resultado do que tinham planejado realizar, proporcionando o desenvolvimento da representação criativa.
Análise do 2º Episódio
Logo após Arn ir embora, B e A interrompem a brincadeira com as colheres de plástico e de madeira. Bruno inicia uma brincadeira embaixo da mesa do canto da casa com a L e a AC, enquanto A dirige-se para o canto da linguagem. Depois de um tempo, aproximadamente onze minutos após o início desta situação, as crianças retornam para baixo da mesa e a professora senta-se no chão, ao lado delas, para observá-las enquanto brincam.
B | Quer mexer um pouquinho no meu computador? (pergunta para Saio que estava sentada perto da mesa) |
Profª. | Quero! |
B | Eu vou por nos jogos |
Profª. | Que jogos tem? |
B | Stuart Little |
Profª. | (fala para o B) do Stuart Little? E como é que se joga? |
B | tu põe ele, o skate embaixo dele, se ele não tiver com o skate, ele não anda |
Profª. | Tá (arruma o pezinho do teclado) |
B | Ele anda sozinho só quando tem os bichinhos de um lado, aí tu mata |
Profª. | Tá, como é que eu faço pra matar? |
B | Tu tens que pular em cima dos bichinhos |
Profª. | Vamos lá |
B | Tá levantado o pezinho de dentro (referindo-se ao teclado) |
Profª. | Ó, Stuart (digitando no teclado) |
B | (mexe com o mouse) Tem que pegar o skate, né? (olha pra frente como se tivesse monitor) |
Profª. | Aham! Tem que pegar o skate! |
B | Não, só quem quer anda em cima do skate. |
Profª. | Ah pode andar sem skate também? |
B | (faz que sim com a cabeça) |
Profª. | Ah, então vou andar um pouco com skate e depois eu vou trocar... |
B | Só que não dá mais pra sair depois |
Profª. | Ah, não? Fica até o final do jogo? |
B | Não, então tem que pegar uns negocinhos, uns negocinho de impulso pra ti sair, senão tem que pular com o skate. |
Profª. | Mostra então como é que se joga pra eu aprender! (entrega o teclado pro Bruno) Depois eu jogo! |
Considerações finais
Um aspecto relevante deste trabalho foi mostrar a importância da brincadeira para o desenvolvimento infantil, considerando que a criança não brinca apenas por brincar, mas sim que, é através da brincadeira que acontece o seu desenvolvimento intelectual, físico e afetivo. O brincar é uma ação do ser humano integral, que o desenvolve físico e intelectualmente, favorecendo a construção de vínculos afetivos e sociais positivos, sendo esta última uma condição necessária para que possamos conviver em grupos.
O enfoque utilizado para compreender a interação professor–aluno em sala de aula foi o psicológico–interacionista, por nossa preocupação estar no desenvolvimento e na aprendizagem da criança, considerando que a aprendizagem pela ação é uma condição necessária para a reestruturação cognitiva e para o desenvolvimento (Hohmann e Weikart, 1997).
A corrente interacionista deu espaço a vários estudos relativos à contribuição das interações sociais nas modificações dos conhecimentos e das competências práticas nas crianças, em relação às quais é amplamente reconhecida e demonstrada a importância do papel do adulto (pai ou educador) (VERBA & ISAMBERT, p. 245, 1998).
De acordo com Davis (1989) “Cabe a ele [o professor] garantir a simetria das relações que se estabelecem entre os alunos, evitando que uns se calem, outros apenas obedeçam e outros ainda dominem. (...) criando condições para a colaboração, a compreensão mútua e a comunicação produtiva.” (p.54). Além disso, cabe também ao professor, como integrante ativo destas interações e o mais experiente, pensar e organizar as atividades que garantam a aprendizagem de seus alunos, sendo bem estruturadas e que promovam a interação entre as crianças, isto é, comunicação e trocas; observar e participar quando preciso, enfim, auxiliar os alunos quando necessário para que superem os desafios apresentados em seu processo contínuo de construção do conhecimento. (Davis, 1989)
DAVIS, C; SILVA, M.A. S. S.; ESPÓSITO, Y. Papel e valor das interações sociais em sala de aula. Cadernos de Pesquisa, São Paulo (71): 49-54. Novembro 1989.
FARRAN, D. C.; COLLINS, E. N. – Teacher Child Interaction Scale. Vanderbilt University e University of North Caroline. 1996;
HOHMANN, M. WEIKART, D.P. Educar a criança pela acção. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.